Wednesday, June 30, 2004

[pág. 65]

— E não sucede mais nada!
Nada ali se modifica
Naquelas quatro casitas
De um beco triste da Bica.

António Botto, ROMANCE

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[E passámos às finais do Euro!!! Agora vamos ver se conseguimos a mesma mobilização incondicional para outras conquistas bem mais decisivas no futuro! Viva a Selecção e o Scolari que fizeram um bom trabalho, novamente na "cidade triste e alegre"!]
[pág. 63]

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Fernando Pessoa, POESIAS
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[e consegui o prolongamento da Bolsa para alargar a pesquisa ao eixo mediterrânico!!! juntam-se assim a São Paulo, Londres e Nova Iorque cidades igualmente carismáticas como Barcelona e Milão! mas falarei sobre isso mais tarde...]

Monday, June 28, 2004

[pág. 46]

Sol nulo dos dias vãos
Cheios de lida e de calma
Aquece a menos as mãos
A quem não entras na alma.

Fernando Pessoa, POESIAS
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[breves, pessoais e transmissíveis: ser cidadão não é só apoiar a selecção é participar por uma melhor democracia e zelar pelos nossos direitos! No regresso ao país a estupefacção não podia ser maior, tanta alegria com o fabuloso jogo frente à Inglaterra — e eu em território "inimigo"... — e tanta decepção com o abuso de poder político. "O que faz falta" é mobilizar a malta para que, como cidadãos, não deixemos de ter voz sobre matérias tão estruturais e com um impacto tão profundo na nossa vida. Não deixemos que decidam por nós: uma cidade, um país, diferencia-se sobretudo pelas pessoas com que conta e que o tornam também único, especial.]

Tuesday, June 22, 2004

[LONDON CALLING...]

queridos cibernautas, a minha estadia de momento em Londres leva-me a introduzir um breve desvio pela vida da cidade. Encontrei na Photographers’ Gallery uma edição fac-simile do “Love on the Left Bank” de Ed Van der Elsken, só por 19.99 libras! Aproveitem se puderem, a edição é muito cuidada e fiel ao original, tão somente um dos livros de fotografias mais influentes e inovadores desde 1956. Até breve, já de Lisboa...

Friday, June 18, 2004

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[pág. 36-38]

Por parques e praças,
Ruas e travessas,
Tu, meu olhar, caças
A vida. E tropeças.


Corre, olhar, em roda!
O que te intimida?
A vida? Só toda
Pode amar-se, a vida

Alberto de Serpa, RUA

Thursday, June 17, 2004

[pág. 34]

Bem me lembro das altas ruazinhas
Que ambos nós percorremos de mãos dadas…

Cesário Verde, NOITE FECHADA

Wednesday, June 16, 2004

[hoje com um bónus para compensar o excerto em falta no pós-eleições pseudo-europeias; também porque, confesso, a visão conformista do amor por Ricardo Reis me incomodou ao ponto de não a querer lançar assim, isolada, no ciberespaço; sobretudo quando “Os Amantes sem dinheiro” se prestam tanto aos dias que correm…]

[pág. 32]

Eu falo dum jardim onde começa
O dia claro de amantes enlaçados.

Eugénio de Andrade, OS AMANTES SEM DINHEIRO

[pág. 30]

Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.

Ricardo Reis, ODES

Tuesday, June 15, 2004

[...desta vez com um diazito a menos, dada a ressaca das vergonhosas eleições europeias, ninguém quis saber da Europa! e depois dizem-se cidadãos do mundo...]

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[pág. 29]

Cheguei-me pera ela, com voz maviosa,
disse-lhe: quereis companhia amorosa?

Gil Vicente, FARSA DOS ALMOCREVES

Friday, June 11, 2004

[pág. 26]

Ai eu coitada!
Como vivo en gram desejo
por meu amigo
que tarda e non vejo!

D. Sancho I, CANTAR DE AMIGO

Thursday, June 10, 2004

[pág. 24]

Ah, o êxtase dos namorados
Que se olham, beijam, voltam a olhar-se
e já não sabem
Que mais hão-de fazer que mais hão-de
inventar.

Alexandre O’Neill

Wednesday, June 09, 2004

[pág. 20]

Que sabes tu mais que ser feliz?
O teu quarto é ainda de bonecas,
as tuas mãos são lírios…
É verdade: são lírios. E esta velha imagem,
Só porque a lembro em teu louvor, parece
que é a primeira vez que um Poeta a diz.

Sebastião da Gama, A UMA CRIANÇA

Tuesday, June 08, 2004

[pág. 19]

Gerarão as crianças quanta vida ouviram:
algumas serão homens.

Jorge de Sena, COROA DA TERRA

Monday, June 07, 2004

[pág. 17/inédito]

Mas logo um riso perto me desperta,
de crianças que brincam na coberta
de um barco só por elas conhecido.

E é nelas certa a vida ao sonho aberta.

Armindo Rodrigues, DEZ ODES AO TEJO

Friday, June 04, 2004

[pág. 16]

Grande é a poesia, a bondade e as danças…
Mas o melhor do mundo são as crianças.

Fernando Pessoa, LIBERDADE

Thursday, June 03, 2004

[pág. 9]

Meninos de olhos adultos
Fundos como dois segredos

Sidónio Muralha, TRÊS POEMAS DE LISBOA

Wednesday, June 02, 2004

[pp. I-XI]

NÃO: Nada de proas homéricas singrando rio acima, batidas de ignotos mares, a fundar a capital do futuro Império-que-foi: mas um homem hirsuto e furtivo, talvez em busca da liberdade, que um dia assomou aqui e, com a mão afeita ao sílex, arredou o espesso canavial a olhar com espanto a serena e virgem expansão das águas, onde o sol se espelhava, quente e glorioso como um deus possessivo.
Ergueu a choça à beira-ria, ao abrigo do juncal, onde convergiam as águas dos abruptos morros e colinas. E constituiu família, pedra angular duma história e dum carácter. Tudo data da entrada em cena desse homem seminu e ungulino.
Para trás, toda esta orla caótica da Meseta, selva aspérrima esparsamente povoada de gentes entre si estranhas e hostis, dormitava na inocente bruteza primordial. Com o tempo vagoroso, vieram vindo incertas caravanas de nómades e rechaçados. Isto era um cabo-do-mundo, onde (como na Roma de Rómulo e Remo ou no, mais tarde, Far-West) a ninguém se perguntava o nome nem a origem. Fixaram-se perto da gente bisonha do lugar: as barreiras naturais que separam os homens, uma vez vencidas, fundem-nos melhor. Alguns terão vindo pelos meandros do litoral; um dia a primeira canoa desceu o rio, a medo. O coio de aventureiros maltrapidos espraiou-se pela margem pantanosa, pescando e caçando. Havia lugar para todos.
O sítio era malsão, e do mar distante chegavam a espaços mercadores e agressores, bem armados e apetrechados homens do bronze: numa hora de perigo, a horda inorgânica subiu a íngreme colina, carregando a prole e as magras posses, em busca de abrigo e baluarte. Assim nasceu a Acrópole, e com ela a unidade, o compacto e o poder.
Lá do alto avistava-se a verdura aveludada das colinas e vales donde lhes vinha o pão e o vinho grosso, às vezes macio como um sol de Outono, e por onde terão feito razias. As populações rurais, cônscias dos perigos comuns, não tardaram em vir, de tributo na mão, pedir paz e comércio, amizade e protecção.
Os séculos rondaram, e o burgo dormitante foi absorvendo os incursores: todo o ocupante acaba assimilado. Distantes convulsões, irradiando do lugar geométrico do mundo, Roma, trouxeram-lhe um dia, com as legiões, uma língua, uma lei, uma cultura novas — e um arremedo de pátria. A civitas aconchegou-se melhor em torno do templo alvejante, entre muralhas que iam abrir portas na praia. As naves romanas faziam escala, traziam mercancias, novidades, faziam aguada (o vinho forte lembrava o da Itália), carregavam mantimentos, recrutavam homens. O burgo prosperou, consolidou-se, criou um orgulho. O interlande, romanizado, deixara de ser-lhe hostil. A língua melodiosa tornou-se geral, como os deuses aclimatados. E houve enfim estradas.
Até que a unidade e a paz da submissão aluíram com o Império: outras invasões passaram, deixando um rasto de ruínas, ou se aclimataram, criando um poder novo e distante. Os deuses foram substituídos por Deus. A cidade ficou, a língua e os usos permaneceram, evoluindo.
Mas nem visigodos nem muçulmanos curavam do mar, que atraía esta população mesclada, aventureira, mercantil, amiga da liberdade, das rixas, da dança, do vinho, do amor. Nas vielas do morro, largas como a altura duma lança ou o floreio duma espada, pulsava o tumulto de cem raças e classes, frandulagem que o Direito, os usos, a conveniência, o Poder, mantinham unida e coesa. Em baixo, na praia, as redes secavam ao sol, cheirava a peixe salgado e a mosto derramado, fraldicavam cães vadios, e ressoavam marteladas nos cavernames resinosos.
Chegavam dos arrabaldes os saloios, homens do deserto, berberes altos e mal barbados, mercadejando os frutos das suas hortas de Arum-al-Raxide. Pela costa desciam homens do mar, com as mulheres ousadas e fecundas, tanto quanto as saloias eram feias e embiocadas.
A urbe ribeirinha vira passar carros e carretas, e aprendera que a salvação está no lucro e na manha: tornou-se porto franco de encontro e fusão, respiradouro da nação potencial. Transpôs a barreira temerosa da rebentação, e fez-se ao mar.
Fermentava nela um espírito de independência e auto-domínio — quem governa aqui somos nós, cidadãos, lisboetas enfim. Mas um dia vieram por terra cavaleiros e a chusma de peões, falando a sua mesma língua; e por mar os Cruzados do Norte: a fortaleza rendeu-se, o Islão recedeu mais. Este quadrilátero recortado na Ibéria, entre cordilheiras e desfiladeiros, plainos desérticos e o litoral, por onde uma população heteróclita e bárbara, com laivos de democracia e de feudalismo, esgaravatava a mísera subsistência, lavrando terra e mar, converge agora, polarizado, para o centro aglutinador.
Chegada esta fusão da diversidade, Lisboa vai assumir um papel que a transcende. A monarquia terratenente acabará por aderir ao facto: descerá, por este burgo, a molhar quilhas no mar-oceano. Erguem-se na Ribeira os espectros das primeiras galés de longo curso. Homens de olho azul e nome arrevezado lançam olhares ambiciosos para o mar que leva a Flandres e Inglaterra, a Marrocos e Guiné. A cidade marinheira torna-se consciência e síntese duma pátria e duma política nova. Para bem? para mal?

Esta ganga de moçárabes e godos, de marujos e hortelãos, de letrados e frades, de soldados e mendigos, de mercadores e aventureiros, de missionários e mercenários, de nobres e plebeus, de poetas e patos bravos, de alguazis e rufiões, de escrivães e requerentes, de cosmopolitas e aldeotas, de muitas e desvairadas gentes sempre, — bomba aspirante-premente de um Destino Manifesto — polariza a Nação. Mas não tarda que esta venha a dominá-la progressivamente.
De há cento e cincoenta anos ouve-se dizer: “A Província produz e paga. Quer paz, quer ordem, quer fomento e virtude. Lisboa consome e destrói. É a desordem endémica, o boato, a ociosidade. Vive da política, da vadiagem, do orçamento. Caprichosa e volúvel, ergue e adora hoje os ídolos que amanhã lapidará. É rebelde, imprevidente e perdulária. Ri e canta agora, para logo chorar e protestar. E é como a amante depravada, a um tempo submissa e absorvente, que adormece com os seus filtros aqueles mesmos que a aborrecem. Todo o nosso mal vem de Lisboa. É preciso acabar com a ditadura da Arcada e de São-Bento, dos botequins e dos pasquins, da malta das esquinas e dos intelectuais sem senso prático.”
Aqui protestam lisboetas inocentes da arruaça, do Burocratismo e do fomento: “A Província? A Província dormita, arranja emprego, vai à missa e rumina. O seu exército voraz de bacharéis, de escribas e suplicantes, de caciques e curas, domina o Terreiro do Paço, as Cortes, a Força Armada, o funcionalismo, o ensino — tudo! (Se ele até os nossos deputados são de fora! e as varinas, que nos dão carácter!) A Província é que vive à nossa custa. Comeu sempre dos favores reais, do Deus-guarde-a-Vossa-Excelência. Brada contra isto, mas governou sempre. Donde nos vêm os de borla-e-capelo e os gendarmes, os conselheiros e os engraxadores? Desde a sentinela à porta da Boa-Hora aos juízes do Supremo, onde está o lisboeta? Onde é que eu, alfacinha de gema (com opiniões e sem influência), arranjo emprego, a não ser na catraia, ao balcão, no banco ou na oficina?… Que mais quer a Província? Porventura produz ela todo o pão e a carne, o ferro e o carvão que nos são necessários? Produz emigrantes — fácil mercadoria! Tirante ser o Mar, de que temos nós vivido há séculos?
“Lisboa é a liberdade, a fantasia, o lirismo, o progresso, o sangue e fermento da nação. Sem ela, que os amarra juntos, que teriam em comum o Minho e o Algarve, as Beiras e o Alentejo, senão a língua? (E ainda assim!…) A Lisboa de Santo António, de Fernão Vasques, das Naus, do Prior do Crato, do Primeiro de Dezembro e do Cinco de Outubro, a das “revoluções” que Valéry Larbaud descreveu como chuvas passageiras e crepitantes de Primavera — sem ela, que seria de nós todos?”
Lisboa resistiu por muito tempo ao provinciano hegemónico e ambicioso: pátio-dos-milagres que, nas horas de tragédia ou clímax, lança nas ruas a sua espantosa multidão de estropiados e esfarrapados, uma arraia-miúda que procura ainda (tal aquele distante primeiro settler) o ar da liberdade, quente como o sol.
“Lisboa — dizia-me um poeta que há vinte anos morreu inédito e tuberculoso, como cumpre a todos os génios desta freguezia dos Mártires — é uma ilusão cubista, esta espuma no ar, toiradas, gritos, pregões, o Fado: só os marujos e os operários lhe dão realidade e personalidade. De resto, quem somos nós? Vagabundos que vamos pelo orbe sem destino, ou ficamos por esses becos a sonhar grandezas, a arranhar a banza, a vomitar os pulmões de mistura com pragas e endeixas… Os que não envelhecemos numa loja obscura a vender panos!”
Desta Lisboa oculta ou esquecida, de Lisboa e quem cá mora, ninguém falou com tão amargo humor nem tão enternecida contemplação, como Irene Lisboa e Manuel Mendes.

As cidades nascem e morrem todos os dias, transfiguram-se sem perder a essência. Porventura terá Lisboa mudado tanto que não a reconheçamos?
A Lisboa do Fado uterino menor, desgarrado e soluçante, das mansas e discretas podridões, dos galegos e das mulheres por trás das tabuinhas; dos sotas galopando de pé nas ancas das pilecas, como cowboys do basalto; dos quiosques alumiados a acetilene, vendendo aos noctívagos o café e o grog; a Lisboa dos rufias que não sujavam as mãos no trabalho ou no furto, narravam com delicadezas de anatómicos as proezas da naifa, e acabavam levados barra fora num cavalo-de-pau, ou a uma esquina, em duelos de gigantes-mirins, batendo-se como imaculados cavaleiros de romance pela integridade do feudo ou por sua dama, a varina ou matriculada que os sustentava; dos filhos de antigos generais e de nomes ilustres, que se afundavam nas vielas, ébrios de fatalismo, nostalgia e volúpia rasca; e dos filhos de ingleses que perdiam a fleuma, e de judeus importados, que perdiam a ortodoxia e o senso dos negócios, para se enfrascarem de tinto; a Lisboa dos condignos funerais a filarmónica amolgada e do Manuel dos Passarinhos: “à volta não se esqueçam”; dos magalas de chibatinha e de barrete à banda, namorando nos jardins as sopeirinhas rubicundas; dos marujos garbosos, essência e flor da capital (que fazem hoje, sem eles, os amadores de maresia?), batendo-se pelas terras e becos com a Polícia e a Guarda, em nome do prestígio duma farda; a Lisboa dos pregões musicais e das tipóias rangendo no macadame, das rusgas e das “sovaqueiras”, dos do “mosto” e dos “Capoeiras” — essa desapareceu talvez, e em vão a buscamos nestas imagens.
Sob a sua fachada de cimento áspero, para gozo do turista nutrido de receitas e clichés, a “cidade de traseiras” vira hoje as traseiras para as avenidas da prosperidade dos outros; o Fado derivou em canção ululante de optimismo enlatado, a domicílio, com garganteios de cultura coimbrã, tangido por unhas envernizadas a cor de rosa e dedos afogados em cachuchos de preço; o metralhar das escavadoras pneumáticas abafa os gorgeios e os pregões, já repelidos pelos fumos do gasóleo que turvam o azul do céu; os heróis do volante transformam as ruas em pistas da morte, ou rolam devagar nos seus quatro-cilindros, à caça das garotas que continuam a andar a pé; senhores bem, impecàvelmente sartorizados, comem doces de ovos pela mão de esposas elegantes, muito tementes a Deus e ao preconceito; sob o dossel da compostura convencional, pululam os encontros clandestinos e as liaisons dangereuses… Em vez das hortas, o Estoril; mariscos, futebol, mendigos de ascensor…
Mas ainda há beirais floridos, varandas com nespereiras, gaiolas de passarinhos, papagaios, voos de pombas; e mulheres de luto, pimenteiras, namorados esquecidos, velhos dormindo ao sol nos parques e jardins.
E há as crianças, puras de todo [sic] os nossos desvios: reparem nelas, miniaturais, delicadas como obras de cinzeladores rococó; olhos rasgados, serenos, fisionomias atentas e sorridentes, tão lizas, que espanta-se a gente de pensar que virão algum dia a transfigurar-se nestas máscaras enrugadas de queixume e apoquentação, que são as do triste lisboeta dos nossos dias. Por que artes conseguimos nós transtorná-las assim? Ah, se ao menos essas, dentre tudo o que dia a dia demolimos, fosse possível preservá-las!

Há horas em que a Cidade parece regressar àquele instante inicial de paz e criação: o sol cai a pino sobre a calçada reverberante e os quintalórios adormecidos; calam-se os pregões, há um recolhimento no ar, uma vela vermelha e cautelosa rasteja (como ao tempo dos califas) no esmalte azul do Tejo, um calor voluptuoso irradia dos corações…
Presépio, anfiteatro, cais dum destino, plano inclinado por onde há séculos um povo e uma alma parecem escoar-se a caminho de outros mundos e paisagens, do pão amargo sobretudo, — Lisboa é este rio imenso, este horizonte de apelos sem fim, e não se pode ter nascido aqui, vivido aqui, ou ser-lhe assimilado, sem lhe sofrer o influxo, sem ficar para sempre marcado duma vocação, dum desgarramento e fatalismo, dum anseio de partir e tornar, duma sensual melancolia.

José Rodrigues Miguéis [assinado com letra cursiva]