Wednesday, August 04, 2004

[pág. 142, POEMA INÉDITO]

A sombra enforcou naquele candeeiro
o homem que eu imagino
para ali a dançar o nevoeiro
do seu destino.

Que fácil matar assim!

Nem lhe falta o corvo
num halo
de carícia
— a devorá-lo
dentro de mim…

(Cuidado! Um polícia.
Vou ressuscitá-lo.)

José Gomes Ferreira

Friday, July 30, 2004

[pág. 139-141, POEMA INÉDITO]

OS VELHOS

Em suma: somos os velhos,
Cheios de cuspo e conselhos,
Velhos que ninguém atura
A não ser a literature.

E outros velhos. (Os novos
Afirmam-se por maus modos
Com os velhos). Senectude
É tempo não é virtude…

Decorativos? Talvez…
Mas por dentro “era uma vez…”

*

Velhas atrozes, saídas
De tugúrios impossíveis,
Dispararam, raivoso, o dente
Contra tudo e toda a gente.

Velhinhas de gargantilha
Visitam o neto, a filha,
E levam bombons da crème
Ou palitos “de la reine”.

A ler p’lo sistema Braille
— Ó meus senhores escutai! —
Um velho tira dos dedos
Profecias e enredos.

Outros mijam, fazem esgares,
Têm “poses” e vagares
Bem merecidos. Nos jardins,
Descansam, depois, os rins.

Aqueloutros (os coitados!)
Imaginam-se poupados
Pelo tempo, e às escondidas
Partem p’ra novas surtidas…

Muito digno, o reformado
Perora, e é respeitado
Na leitaria: “A mulher
É em casa que se quer!”

Velhotes com mais olhinhos
Que tu, fazem recadinhos,
Pedem tabaco ao primeiro
E mostram pouco dinheiro…

E os que juntam capicuas
E fotos de mulheres nuas?
E os tontinhos, os gaiteiros,
Que usam cravo e põem cheiros?

(Velhos a arrastar a asa
Pago bem e vou a casa.)

E a velha que se desleixa
E morre sem uma queixa?
E os que armam aos pardais
Nessas hortas e quintais?

(Quem acerta co’os botões
Deste velho? Venha a cidade
Ajudá-lo a abotoar
Que não faz nada de mais!)

Velhos, ó meus queridos velhos,
Saltem-me para os joelhos:
Vamos brincar?

Alexandre O’Neill

Friday, July 23, 2004

[pág. 124]

Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros.

Álvaro de Campos, POESIAS


Porque um domingo é família
É bem-estar, é singeleza.

Mário de Sá-Carneiro, DISPERSÃO

Friday, July 09, 2004

[pág. 120]

Nos dedos do vento
O sonho dos amantes
Os cabelos voando
Nos dedos do vento
O carrocel levando
O riso dos feirantes
E a alegria do mundo
Em mealheiros de barro.

Orlando da Costa, FEIRA

Thursday, July 08, 2004

[pág. 116, POEMA INÉDITO]

CAPITAL
Casas, carros, casas, casos.
Capital
encarcerada.

Colos, calos, cuspo, caspa.
Cautos, castas. Calvos, cabras.
Casos, casos. Carros, casas...
Capital
acumulado.

E capuzes. E capotas.
E que pêsames! Que passos!
Em que pensas? Como passas?
Capitães. E capatazes.
E cartazes. Que patadas!
E que chaves! Cofres, caixas...
Capital
acautelado.

Cascos, coxas, queixos, cornos.
Os capazes. Os capados.
Corpos. Corvos. Copos, copos.
Capital, oh Capital,
Capital
decapitada!

David Mourão-Ferreira

Wednesday, July 07, 2004

[pág. 108]

Nesta árvore
onde até os pássaros se enforcam nos ninhos
há muito que mora
uma ninfa de carne incerta
fugida da borrasca
dos caminhos.

Bato-lhe de manso na casca...

Sou eu, ninfa. Abre! Estamos os dois sòzinhos
nesta rua deserta.

Sai cá para fora
e beija-me na boca.

Prova-me que a vida é louca.

José Gomes Ferreira



[pág. 95, POEMA INÉDITO]

Só nós e algum vadio te queremos,
meu rio Tejo antigo e sempre novo.
E, contudo, és as vértebras de um povo.

Armindo Rodrigues, DEZ ODES AO TEJO

Monday, July 05, 2004

[pág. 90]

E vós varinas que sabeis a sal
e que trazeis o Mar no vosso avental,
as Naus da Fenícia ainda não voltaram?!

Almada Negreiros, A CENA DO ÓDIO

[pág. 87, POEMA INÉDITO]

Alguém diz com lentidão:
"Lisboa, sabes..."
Eu sei. É uma rapariga
descalça e leve,
um vento súbito e claro
nos cabelos,
algumas rugas finas
a espreitar-lhe os olhos,
a solidão aberta
nos lábios e nos dedos,
descendo degraus
e degraus
e degraus até ao rio.

Eu sei. E tu, sabias?

Eugénio de Andrade



[pág. 80]

São muitos. A doca está cheia.
Os mastros esbeltos, velas enroladas,
— A graça, o encanto das proas em bico,
E o sol enxarcado de luz e de sonho
As águas paradas...
.............................
...E além, a meio do Tejo, um cruzador
Acendeu a caldeira... Irá partir?!...
Na distância uma espécie de neblina
— Assim como a cambraia da mais fina, —
Vai formando no azul uns flocos d'oiro,
Transparentes, finíssimos, ........
..........................................
E um bando de gaivotas a grasnar
Poisa nas água [sic], fica a baloiçar...

António Botto, BARCOS DE PESCA

Friday, July 02, 2004

[pág. 78]

Passou o Outono já, já torna o frio…
Outono do seu riso magoado.
Álgido Inverno! Oblíquo o sol, gelado…
— O Sol, e as águas límpidas do rio.

Camilo Pessanha, CLEPSIDRA


[pág. 74, POEMA INÉDITO]

Ceifadas breves por um sol rasante
que à mansa tarde encrespa em clamas ondas
de outono ribeirinho e retardado,
gaivotas grasnam, tombam ensombradas
no cintilar macio ante meus olhos.

Velozes barcos passam distância,
rasgando apenas em silêncio e espuma
as águas pálidas no estanho delas.

Ante meus olhos tudo. Não é muito
para que eu sinta uma existência pronta
a comover-se por saber que existe.

Nem mesmo é nada. Se por ser eu sinto,
se por sentir escrevo e porque o escrevo
outros convenço de que tudo está
unívoco, prefixo, necessário
no círculo real que isto contém,
apenas ao real roubei gaivotas
grasnando à beira-rio, neste outono
que torna mansa tarde o entardecer.

Jorge de Sena

Wednesday, June 30, 2004

[pág. 65]

— E não sucede mais nada!
Nada ali se modifica
Naquelas quatro casitas
De um beco triste da Bica.

António Botto, ROMANCE

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[E passámos às finais do Euro!!! Agora vamos ver se conseguimos a mesma mobilização incondicional para outras conquistas bem mais decisivas no futuro! Viva a Selecção e o Scolari que fizeram um bom trabalho, novamente na "cidade triste e alegre"!]
[pág. 63]

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Fernando Pessoa, POESIAS
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[e consegui o prolongamento da Bolsa para alargar a pesquisa ao eixo mediterrânico!!! juntam-se assim a São Paulo, Londres e Nova Iorque cidades igualmente carismáticas como Barcelona e Milão! mas falarei sobre isso mais tarde...]

Monday, June 28, 2004

[pág. 46]

Sol nulo dos dias vãos
Cheios de lida e de calma
Aquece a menos as mãos
A quem não entras na alma.

Fernando Pessoa, POESIAS
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[breves, pessoais e transmissíveis: ser cidadão não é só apoiar a selecção é participar por uma melhor democracia e zelar pelos nossos direitos! No regresso ao país a estupefacção não podia ser maior, tanta alegria com o fabuloso jogo frente à Inglaterra — e eu em território "inimigo"... — e tanta decepção com o abuso de poder político. "O que faz falta" é mobilizar a malta para que, como cidadãos, não deixemos de ter voz sobre matérias tão estruturais e com um impacto tão profundo na nossa vida. Não deixemos que decidam por nós: uma cidade, um país, diferencia-se sobretudo pelas pessoas com que conta e que o tornam também único, especial.]

Tuesday, June 22, 2004

[LONDON CALLING...]

queridos cibernautas, a minha estadia de momento em Londres leva-me a introduzir um breve desvio pela vida da cidade. Encontrei na Photographers’ Gallery uma edição fac-simile do “Love on the Left Bank” de Ed Van der Elsken, só por 19.99 libras! Aproveitem se puderem, a edição é muito cuidada e fiel ao original, tão somente um dos livros de fotografias mais influentes e inovadores desde 1956. Até breve, já de Lisboa...

Friday, June 18, 2004

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[pág. 36-38]

Por parques e praças,
Ruas e travessas,
Tu, meu olhar, caças
A vida. E tropeças.


Corre, olhar, em roda!
O que te intimida?
A vida? Só toda
Pode amar-se, a vida

Alberto de Serpa, RUA

Thursday, June 17, 2004

[pág. 34]

Bem me lembro das altas ruazinhas
Que ambos nós percorremos de mãos dadas…

Cesário Verde, NOITE FECHADA

Wednesday, June 16, 2004

[hoje com um bónus para compensar o excerto em falta no pós-eleições pseudo-europeias; também porque, confesso, a visão conformista do amor por Ricardo Reis me incomodou ao ponto de não a querer lançar assim, isolada, no ciberespaço; sobretudo quando “Os Amantes sem dinheiro” se prestam tanto aos dias que correm…]

[pág. 32]

Eu falo dum jardim onde começa
O dia claro de amantes enlaçados.

Eugénio de Andrade, OS AMANTES SEM DINHEIRO

[pág. 30]

Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.

Ricardo Reis, ODES

Tuesday, June 15, 2004

[...desta vez com um diazito a menos, dada a ressaca das vergonhosas eleições europeias, ninguém quis saber da Europa! e depois dizem-se cidadãos do mundo...]

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[pág. 29]

Cheguei-me pera ela, com voz maviosa,
disse-lhe: quereis companhia amorosa?

Gil Vicente, FARSA DOS ALMOCREVES

Friday, June 11, 2004

[pág. 26]

Ai eu coitada!
Como vivo en gram desejo
por meu amigo
que tarda e non vejo!

D. Sancho I, CANTAR DE AMIGO

Thursday, June 10, 2004

[pág. 24]

Ah, o êxtase dos namorados
Que se olham, beijam, voltam a olhar-se
e já não sabem
Que mais hão-de fazer que mais hão-de
inventar.

Alexandre O’Neill

Wednesday, June 09, 2004

[pág. 20]

Que sabes tu mais que ser feliz?
O teu quarto é ainda de bonecas,
as tuas mãos são lírios…
É verdade: são lírios. E esta velha imagem,
Só porque a lembro em teu louvor, parece
que é a primeira vez que um Poeta a diz.

Sebastião da Gama, A UMA CRIANÇA

Tuesday, June 08, 2004

[pág. 19]

Gerarão as crianças quanta vida ouviram:
algumas serão homens.

Jorge de Sena, COROA DA TERRA

Monday, June 07, 2004

[pág. 17/inédito]

Mas logo um riso perto me desperta,
de crianças que brincam na coberta
de um barco só por elas conhecido.

E é nelas certa a vida ao sonho aberta.

Armindo Rodrigues, DEZ ODES AO TEJO

Friday, June 04, 2004

[pág. 16]

Grande é a poesia, a bondade e as danças…
Mas o melhor do mundo são as crianças.

Fernando Pessoa, LIBERDADE

Thursday, June 03, 2004

[pág. 9]

Meninos de olhos adultos
Fundos como dois segredos

Sidónio Muralha, TRÊS POEMAS DE LISBOA

Wednesday, June 02, 2004

[pp. I-XI]

NÃO: Nada de proas homéricas singrando rio acima, batidas de ignotos mares, a fundar a capital do futuro Império-que-foi: mas um homem hirsuto e furtivo, talvez em busca da liberdade, que um dia assomou aqui e, com a mão afeita ao sílex, arredou o espesso canavial a olhar com espanto a serena e virgem expansão das águas, onde o sol se espelhava, quente e glorioso como um deus possessivo.
Ergueu a choça à beira-ria, ao abrigo do juncal, onde convergiam as águas dos abruptos morros e colinas. E constituiu família, pedra angular duma história e dum carácter. Tudo data da entrada em cena desse homem seminu e ungulino.
Para trás, toda esta orla caótica da Meseta, selva aspérrima esparsamente povoada de gentes entre si estranhas e hostis, dormitava na inocente bruteza primordial. Com o tempo vagoroso, vieram vindo incertas caravanas de nómades e rechaçados. Isto era um cabo-do-mundo, onde (como na Roma de Rómulo e Remo ou no, mais tarde, Far-West) a ninguém se perguntava o nome nem a origem. Fixaram-se perto da gente bisonha do lugar: as barreiras naturais que separam os homens, uma vez vencidas, fundem-nos melhor. Alguns terão vindo pelos meandros do litoral; um dia a primeira canoa desceu o rio, a medo. O coio de aventureiros maltrapidos espraiou-se pela margem pantanosa, pescando e caçando. Havia lugar para todos.
O sítio era malsão, e do mar distante chegavam a espaços mercadores e agressores, bem armados e apetrechados homens do bronze: numa hora de perigo, a horda inorgânica subiu a íngreme colina, carregando a prole e as magras posses, em busca de abrigo e baluarte. Assim nasceu a Acrópole, e com ela a unidade, o compacto e o poder.
Lá do alto avistava-se a verdura aveludada das colinas e vales donde lhes vinha o pão e o vinho grosso, às vezes macio como um sol de Outono, e por onde terão feito razias. As populações rurais, cônscias dos perigos comuns, não tardaram em vir, de tributo na mão, pedir paz e comércio, amizade e protecção.
Os séculos rondaram, e o burgo dormitante foi absorvendo os incursores: todo o ocupante acaba assimilado. Distantes convulsões, irradiando do lugar geométrico do mundo, Roma, trouxeram-lhe um dia, com as legiões, uma língua, uma lei, uma cultura novas — e um arremedo de pátria. A civitas aconchegou-se melhor em torno do templo alvejante, entre muralhas que iam abrir portas na praia. As naves romanas faziam escala, traziam mercancias, novidades, faziam aguada (o vinho forte lembrava o da Itália), carregavam mantimentos, recrutavam homens. O burgo prosperou, consolidou-se, criou um orgulho. O interlande, romanizado, deixara de ser-lhe hostil. A língua melodiosa tornou-se geral, como os deuses aclimatados. E houve enfim estradas.
Até que a unidade e a paz da submissão aluíram com o Império: outras invasões passaram, deixando um rasto de ruínas, ou se aclimataram, criando um poder novo e distante. Os deuses foram substituídos por Deus. A cidade ficou, a língua e os usos permaneceram, evoluindo.
Mas nem visigodos nem muçulmanos curavam do mar, que atraía esta população mesclada, aventureira, mercantil, amiga da liberdade, das rixas, da dança, do vinho, do amor. Nas vielas do morro, largas como a altura duma lança ou o floreio duma espada, pulsava o tumulto de cem raças e classes, frandulagem que o Direito, os usos, a conveniência, o Poder, mantinham unida e coesa. Em baixo, na praia, as redes secavam ao sol, cheirava a peixe salgado e a mosto derramado, fraldicavam cães vadios, e ressoavam marteladas nos cavernames resinosos.
Chegavam dos arrabaldes os saloios, homens do deserto, berberes altos e mal barbados, mercadejando os frutos das suas hortas de Arum-al-Raxide. Pela costa desciam homens do mar, com as mulheres ousadas e fecundas, tanto quanto as saloias eram feias e embiocadas.
A urbe ribeirinha vira passar carros e carretas, e aprendera que a salvação está no lucro e na manha: tornou-se porto franco de encontro e fusão, respiradouro da nação potencial. Transpôs a barreira temerosa da rebentação, e fez-se ao mar.
Fermentava nela um espírito de independência e auto-domínio — quem governa aqui somos nós, cidadãos, lisboetas enfim. Mas um dia vieram por terra cavaleiros e a chusma de peões, falando a sua mesma língua; e por mar os Cruzados do Norte: a fortaleza rendeu-se, o Islão recedeu mais. Este quadrilátero recortado na Ibéria, entre cordilheiras e desfiladeiros, plainos desérticos e o litoral, por onde uma população heteróclita e bárbara, com laivos de democracia e de feudalismo, esgaravatava a mísera subsistência, lavrando terra e mar, converge agora, polarizado, para o centro aglutinador.
Chegada esta fusão da diversidade, Lisboa vai assumir um papel que a transcende. A monarquia terratenente acabará por aderir ao facto: descerá, por este burgo, a molhar quilhas no mar-oceano. Erguem-se na Ribeira os espectros das primeiras galés de longo curso. Homens de olho azul e nome arrevezado lançam olhares ambiciosos para o mar que leva a Flandres e Inglaterra, a Marrocos e Guiné. A cidade marinheira torna-se consciência e síntese duma pátria e duma política nova. Para bem? para mal?

Esta ganga de moçárabes e godos, de marujos e hortelãos, de letrados e frades, de soldados e mendigos, de mercadores e aventureiros, de missionários e mercenários, de nobres e plebeus, de poetas e patos bravos, de alguazis e rufiões, de escrivães e requerentes, de cosmopolitas e aldeotas, de muitas e desvairadas gentes sempre, — bomba aspirante-premente de um Destino Manifesto — polariza a Nação. Mas não tarda que esta venha a dominá-la progressivamente.
De há cento e cincoenta anos ouve-se dizer: “A Província produz e paga. Quer paz, quer ordem, quer fomento e virtude. Lisboa consome e destrói. É a desordem endémica, o boato, a ociosidade. Vive da política, da vadiagem, do orçamento. Caprichosa e volúvel, ergue e adora hoje os ídolos que amanhã lapidará. É rebelde, imprevidente e perdulária. Ri e canta agora, para logo chorar e protestar. E é como a amante depravada, a um tempo submissa e absorvente, que adormece com os seus filtros aqueles mesmos que a aborrecem. Todo o nosso mal vem de Lisboa. É preciso acabar com a ditadura da Arcada e de São-Bento, dos botequins e dos pasquins, da malta das esquinas e dos intelectuais sem senso prático.”
Aqui protestam lisboetas inocentes da arruaça, do Burocratismo e do fomento: “A Província? A Província dormita, arranja emprego, vai à missa e rumina. O seu exército voraz de bacharéis, de escribas e suplicantes, de caciques e curas, domina o Terreiro do Paço, as Cortes, a Força Armada, o funcionalismo, o ensino — tudo! (Se ele até os nossos deputados são de fora! e as varinas, que nos dão carácter!) A Província é que vive à nossa custa. Comeu sempre dos favores reais, do Deus-guarde-a-Vossa-Excelência. Brada contra isto, mas governou sempre. Donde nos vêm os de borla-e-capelo e os gendarmes, os conselheiros e os engraxadores? Desde a sentinela à porta da Boa-Hora aos juízes do Supremo, onde está o lisboeta? Onde é que eu, alfacinha de gema (com opiniões e sem influência), arranjo emprego, a não ser na catraia, ao balcão, no banco ou na oficina?… Que mais quer a Província? Porventura produz ela todo o pão e a carne, o ferro e o carvão que nos são necessários? Produz emigrantes — fácil mercadoria! Tirante ser o Mar, de que temos nós vivido há séculos?
“Lisboa é a liberdade, a fantasia, o lirismo, o progresso, o sangue e fermento da nação. Sem ela, que os amarra juntos, que teriam em comum o Minho e o Algarve, as Beiras e o Alentejo, senão a língua? (E ainda assim!…) A Lisboa de Santo António, de Fernão Vasques, das Naus, do Prior do Crato, do Primeiro de Dezembro e do Cinco de Outubro, a das “revoluções” que Valéry Larbaud descreveu como chuvas passageiras e crepitantes de Primavera — sem ela, que seria de nós todos?”
Lisboa resistiu por muito tempo ao provinciano hegemónico e ambicioso: pátio-dos-milagres que, nas horas de tragédia ou clímax, lança nas ruas a sua espantosa multidão de estropiados e esfarrapados, uma arraia-miúda que procura ainda (tal aquele distante primeiro settler) o ar da liberdade, quente como o sol.
“Lisboa — dizia-me um poeta que há vinte anos morreu inédito e tuberculoso, como cumpre a todos os génios desta freguezia dos Mártires — é uma ilusão cubista, esta espuma no ar, toiradas, gritos, pregões, o Fado: só os marujos e os operários lhe dão realidade e personalidade. De resto, quem somos nós? Vagabundos que vamos pelo orbe sem destino, ou ficamos por esses becos a sonhar grandezas, a arranhar a banza, a vomitar os pulmões de mistura com pragas e endeixas… Os que não envelhecemos numa loja obscura a vender panos!”
Desta Lisboa oculta ou esquecida, de Lisboa e quem cá mora, ninguém falou com tão amargo humor nem tão enternecida contemplação, como Irene Lisboa e Manuel Mendes.

As cidades nascem e morrem todos os dias, transfiguram-se sem perder a essência. Porventura terá Lisboa mudado tanto que não a reconheçamos?
A Lisboa do Fado uterino menor, desgarrado e soluçante, das mansas e discretas podridões, dos galegos e das mulheres por trás das tabuinhas; dos sotas galopando de pé nas ancas das pilecas, como cowboys do basalto; dos quiosques alumiados a acetilene, vendendo aos noctívagos o café e o grog; a Lisboa dos rufias que não sujavam as mãos no trabalho ou no furto, narravam com delicadezas de anatómicos as proezas da naifa, e acabavam levados barra fora num cavalo-de-pau, ou a uma esquina, em duelos de gigantes-mirins, batendo-se como imaculados cavaleiros de romance pela integridade do feudo ou por sua dama, a varina ou matriculada que os sustentava; dos filhos de antigos generais e de nomes ilustres, que se afundavam nas vielas, ébrios de fatalismo, nostalgia e volúpia rasca; e dos filhos de ingleses que perdiam a fleuma, e de judeus importados, que perdiam a ortodoxia e o senso dos negócios, para se enfrascarem de tinto; a Lisboa dos condignos funerais a filarmónica amolgada e do Manuel dos Passarinhos: “à volta não se esqueçam”; dos magalas de chibatinha e de barrete à banda, namorando nos jardins as sopeirinhas rubicundas; dos marujos garbosos, essência e flor da capital (que fazem hoje, sem eles, os amadores de maresia?), batendo-se pelas terras e becos com a Polícia e a Guarda, em nome do prestígio duma farda; a Lisboa dos pregões musicais e das tipóias rangendo no macadame, das rusgas e das “sovaqueiras”, dos do “mosto” e dos “Capoeiras” — essa desapareceu talvez, e em vão a buscamos nestas imagens.
Sob a sua fachada de cimento áspero, para gozo do turista nutrido de receitas e clichés, a “cidade de traseiras” vira hoje as traseiras para as avenidas da prosperidade dos outros; o Fado derivou em canção ululante de optimismo enlatado, a domicílio, com garganteios de cultura coimbrã, tangido por unhas envernizadas a cor de rosa e dedos afogados em cachuchos de preço; o metralhar das escavadoras pneumáticas abafa os gorgeios e os pregões, já repelidos pelos fumos do gasóleo que turvam o azul do céu; os heróis do volante transformam as ruas em pistas da morte, ou rolam devagar nos seus quatro-cilindros, à caça das garotas que continuam a andar a pé; senhores bem, impecàvelmente sartorizados, comem doces de ovos pela mão de esposas elegantes, muito tementes a Deus e ao preconceito; sob o dossel da compostura convencional, pululam os encontros clandestinos e as liaisons dangereuses… Em vez das hortas, o Estoril; mariscos, futebol, mendigos de ascensor…
Mas ainda há beirais floridos, varandas com nespereiras, gaiolas de passarinhos, papagaios, voos de pombas; e mulheres de luto, pimenteiras, namorados esquecidos, velhos dormindo ao sol nos parques e jardins.
E há as crianças, puras de todo [sic] os nossos desvios: reparem nelas, miniaturais, delicadas como obras de cinzeladores rococó; olhos rasgados, serenos, fisionomias atentas e sorridentes, tão lizas, que espanta-se a gente de pensar que virão algum dia a transfigurar-se nestas máscaras enrugadas de queixume e apoquentação, que são as do triste lisboeta dos nossos dias. Por que artes conseguimos nós transtorná-las assim? Ah, se ao menos essas, dentre tudo o que dia a dia demolimos, fosse possível preservá-las!

Há horas em que a Cidade parece regressar àquele instante inicial de paz e criação: o sol cai a pino sobre a calçada reverberante e os quintalórios adormecidos; calam-se os pregões, há um recolhimento no ar, uma vela vermelha e cautelosa rasteja (como ao tempo dos califas) no esmalte azul do Tejo, um calor voluptuoso irradia dos corações…
Presépio, anfiteatro, cais dum destino, plano inclinado por onde há séculos um povo e uma alma parecem escoar-se a caminho de outros mundos e paisagens, do pão amargo sobretudo, — Lisboa é este rio imenso, este horizonte de apelos sem fim, e não se pode ter nascido aqui, vivido aqui, ou ser-lhe assimilado, sem lhe sofrer o influxo, sem ficar para sempre marcado duma vocação, dum desgarramento e fatalismo, dum anseio de partir e tornar, duma sensual melancolia.

José Rodrigues Miguéis [assinado com letra cursiva]

Thursday, May 27, 2004

[página 5]

Outra vez te revejo,

Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui…

Outra vez te revejo — Lisboa e Tejo e tudo…

Álvaro de Campos, LISBON REVISITED (1926)

Wednesday, May 26, 2004

Ainda da poesia em Lisboa...

E abre-se a "Lisboa, cidade triste e alegre" com o seguinte poema de Armindo Rodrigues:

Alegre ou triste,
uma cidade como esta
é sempre para os olhos uma festa.

Não raramente, com certeza,
a razão lhe resiste
em encontrar beleza.

Mas logo algum motivo
vivo
ou de tradição,
contra a não obstante justa restrição,
por sua vez protesta.

A alegria a si própria se assegura.
À tristeza,
por consolação,
basta-lhe um pouco de ternura.

[página 3]
---

Seguirei aqui, a partir de hoje, página a página os excertos literários incluídos na Lisboa de Victor Palla e Costa Martins, por me parecer que aqui, o "nosso" ciberespaço, se presta de um modo muito feliz à capacidade de engendrar imagens, tal como previsto pela dupla Palla-Martins no livro...

Tuesday, May 25, 2004

Voltemo-nos então para as palavras dos próprios autores acerca da sua "Lisboa"...

"O Livro aí está. Chama-se “Lisboa”,
mas é o retrato de homens, mulheres, crianças que nela habitam, traçado
por dois homens que nela nasceram e vivem. Visão parcial? Evidentemente.
Incompleta, tendenciosa? Pois claro. Não tivemos a ambição de fazer um
documentário total. Um soneto pode dizer mais do que um poema épico,
um hai-kai mais do que um soneto; um romance passado em Dublin num
só dia pode explicar melhor o homem do que uma História Universal.
O documento em si pouco interessava; para isso ficam os jornais, as revistas,
os arquivos. […]"

Victor Palla e Costa Martins,
Lisboa, Cidade Triste e Alegre (Lisboa: Círculo do Livro, 1959).

Começa assim um itinerário pela imagem, também da poesia, em torno de Lisboa.

Thursday, May 13, 2004

Lisboa pessoana

É, portanto, de uma Lisboa pessoana que se parte. E esse ponto de partida é feito não apenas pelo modo como Fernando Pessoa (na figura de Álvaro de Campos) resolve com grande inventividade poética uma humanização da cidade ("triste e alegre"), mas também por se partilhar com Campos essa deriva subjectiva a partir do lugar que se habita. São os próprios autores Victor Palla e Costa Martins que referem essa relação umbilical com a cidade onde nasceram e trabalham à data do arranque mais sistemático e respectiva concretização do projecto fotográfico em torno de Lisboa. Bastará mergulhar no Índice que ambos escrevem nas páginas finais da sua "Lisboa, cidade triste e alegre" (Lisboa: Ed. Círculo do Livro, 1959) para confirmar essa deambulação a partir de dentro, seja do interior da cidade que assim se percorre pela fotografia, seja também a partir de uma autoria tão informada quanto preocupada em encontrar um discurso próprio e pessoal. Ou antes, profundamente pessoano...

Tuesday, May 11, 2004

Ainda de Lisboa...

Começo por rever a origem do título do livro-exposição de Victor Palla e Costa Martins. A sua Lisboa "cidade triste e alegre" deve-se ao engenheiro-metafísico desdobrado de Fernando Pessoa, e é também uma cidade desdobrada em duas versões...

LISBON REVISITED
(1923)

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho,
Já disse que sou só sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo…
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

[Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), in Álvaro de Campos: Poesia, Edição de Teresa Rita Lopes, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, pp. 271-272]

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LISBON REVISITED
(1926)

Nada me prende a nada.
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja —
Definidamente pelo indefinido…
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.
Correram cortinas por dentro de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número de porta que me deram.

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta — até essa vida…

Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.

Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me náufrago;
Ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.
Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma…
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas coortes por existir, esfaceladas em Deus.

Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida…
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui…
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar,
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos, todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém fora de mim?

Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Outra vez te revejo — Lisboa e Tejo e tudo —,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver…

Outra vez te revejo,
Sombra que passa através de sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir…

Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim —
Um bocado de ti e de mim!…

26/4/1926

[Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), in Álvaro de Campos: Poesia, Edição de Teresa Rita Lopes, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, pp. 300-302]

Monday, May 10, 2004

De Lisboa.

Retomo agora lentamente a escrita no ciberespaço, entre a burocracia que implica uma candidatura às bolsas da FCT e tudo o que me falta fazer para concluir a investigação proposta à Gulbenkian.
Alerto já os interessados para uma ideia que talvez se venha a concretizar em breve: um seminário de pesquisa a partir da "Lisboa, Cidade Triste e Alegre" (1958-59/1982) da dupla de arquitectos-fotógrafos Victor Palla e Costa Martins. Mas ainda é cedo para avançar pormenores... Mantenham-se atentos, voltarei a dar mais novidades sobre o assunto...!

Entretanto, e pensando novamente no que as cidades têm de tão especial, não percam as conversas da artista-curadora Paula Roush, do pintor Bruno Pacheco, do fotógrafo Paulo Catrica e do curador Miguel Amado, sobre as diferenças e semelhanças entre Lisboa e Londres, na www.storm-magazine.com

Wednesday, May 05, 2004

Bom dia a todos,
hoje recomeço a minha actividade escrita neste blog, voltando a ligar estas crónicas urbanas à pesquisa que me encontro a desenvolver em torno da "Lisboa" de Victor Palla e Costa Martins.
Veremos quantas Lisboas podemos encontrar nesta "cidade triste e alegre"...

Friday, March 05, 2004

NOVA IORQUE...
Para saberem mais novidades sobre a minha mais recente estadia em Nova Iorque, espreitem o blog que o Jorge Colombo teve a iniciativa de criar para evitar qualquer desculpa minha sobre a falta de tempo para escrever...obrigada Colombo!

www.lucialucia.blogspot.com