Thursday, May 27, 2004

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Outra vez te revejo,

Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui…

Outra vez te revejo — Lisboa e Tejo e tudo…

Álvaro de Campos, LISBON REVISITED (1926)

Wednesday, May 26, 2004

Ainda da poesia em Lisboa...

E abre-se a "Lisboa, cidade triste e alegre" com o seguinte poema de Armindo Rodrigues:

Alegre ou triste,
uma cidade como esta
é sempre para os olhos uma festa.

Não raramente, com certeza,
a razão lhe resiste
em encontrar beleza.

Mas logo algum motivo
vivo
ou de tradição,
contra a não obstante justa restrição,
por sua vez protesta.

A alegria a si própria se assegura.
À tristeza,
por consolação,
basta-lhe um pouco de ternura.

[página 3]
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Seguirei aqui, a partir de hoje, página a página os excertos literários incluídos na Lisboa de Victor Palla e Costa Martins, por me parecer que aqui, o "nosso" ciberespaço, se presta de um modo muito feliz à capacidade de engendrar imagens, tal como previsto pela dupla Palla-Martins no livro...

Tuesday, May 25, 2004

Voltemo-nos então para as palavras dos próprios autores acerca da sua "Lisboa"...

"O Livro aí está. Chama-se “Lisboa”,
mas é o retrato de homens, mulheres, crianças que nela habitam, traçado
por dois homens que nela nasceram e vivem. Visão parcial? Evidentemente.
Incompleta, tendenciosa? Pois claro. Não tivemos a ambição de fazer um
documentário total. Um soneto pode dizer mais do que um poema épico,
um hai-kai mais do que um soneto; um romance passado em Dublin num
só dia pode explicar melhor o homem do que uma História Universal.
O documento em si pouco interessava; para isso ficam os jornais, as revistas,
os arquivos. […]"

Victor Palla e Costa Martins,
Lisboa, Cidade Triste e Alegre (Lisboa: Círculo do Livro, 1959).

Começa assim um itinerário pela imagem, também da poesia, em torno de Lisboa.

Thursday, May 13, 2004

Lisboa pessoana

É, portanto, de uma Lisboa pessoana que se parte. E esse ponto de partida é feito não apenas pelo modo como Fernando Pessoa (na figura de Álvaro de Campos) resolve com grande inventividade poética uma humanização da cidade ("triste e alegre"), mas também por se partilhar com Campos essa deriva subjectiva a partir do lugar que se habita. São os próprios autores Victor Palla e Costa Martins que referem essa relação umbilical com a cidade onde nasceram e trabalham à data do arranque mais sistemático e respectiva concretização do projecto fotográfico em torno de Lisboa. Bastará mergulhar no Índice que ambos escrevem nas páginas finais da sua "Lisboa, cidade triste e alegre" (Lisboa: Ed. Círculo do Livro, 1959) para confirmar essa deambulação a partir de dentro, seja do interior da cidade que assim se percorre pela fotografia, seja também a partir de uma autoria tão informada quanto preocupada em encontrar um discurso próprio e pessoal. Ou antes, profundamente pessoano...

Tuesday, May 11, 2004

Ainda de Lisboa...

Começo por rever a origem do título do livro-exposição de Victor Palla e Costa Martins. A sua Lisboa "cidade triste e alegre" deve-se ao engenheiro-metafísico desdobrado de Fernando Pessoa, e é também uma cidade desdobrada em duas versões...

LISBON REVISITED
(1923)

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho,
Já disse que sou só sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo…
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

[Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), in Álvaro de Campos: Poesia, Edição de Teresa Rita Lopes, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, pp. 271-272]

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LISBON REVISITED
(1926)

Nada me prende a nada.
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja —
Definidamente pelo indefinido…
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.
Correram cortinas por dentro de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número de porta que me deram.

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta — até essa vida…

Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.

Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me náufrago;
Ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.
Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma…
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas coortes por existir, esfaceladas em Deus.

Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida…
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui…
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar,
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos, todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém fora de mim?

Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Outra vez te revejo — Lisboa e Tejo e tudo —,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver…

Outra vez te revejo,
Sombra que passa através de sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir…

Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim —
Um bocado de ti e de mim!…

26/4/1926

[Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), in Álvaro de Campos: Poesia, Edição de Teresa Rita Lopes, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, pp. 300-302]

Monday, May 10, 2004

De Lisboa.

Retomo agora lentamente a escrita no ciberespaço, entre a burocracia que implica uma candidatura às bolsas da FCT e tudo o que me falta fazer para concluir a investigação proposta à Gulbenkian.
Alerto já os interessados para uma ideia que talvez se venha a concretizar em breve: um seminário de pesquisa a partir da "Lisboa, Cidade Triste e Alegre" (1958-59/1982) da dupla de arquitectos-fotógrafos Victor Palla e Costa Martins. Mas ainda é cedo para avançar pormenores... Mantenham-se atentos, voltarei a dar mais novidades sobre o assunto...!

Entretanto, e pensando novamente no que as cidades têm de tão especial, não percam as conversas da artista-curadora Paula Roush, do pintor Bruno Pacheco, do fotógrafo Paulo Catrica e do curador Miguel Amado, sobre as diferenças e semelhanças entre Lisboa e Londres, na www.storm-magazine.com

Wednesday, May 05, 2004

Bom dia a todos,
hoje recomeço a minha actividade escrita neste blog, voltando a ligar estas crónicas urbanas à pesquisa que me encontro a desenvolver em torno da "Lisboa" de Victor Palla e Costa Martins.
Veremos quantas Lisboas podemos encontrar nesta "cidade triste e alegre"...