Friday, July 30, 2004

[pág. 139-141, POEMA INÉDITO]

OS VELHOS

Em suma: somos os velhos,
Cheios de cuspo e conselhos,
Velhos que ninguém atura
A não ser a literature.

E outros velhos. (Os novos
Afirmam-se por maus modos
Com os velhos). Senectude
É tempo não é virtude…

Decorativos? Talvez…
Mas por dentro “era uma vez…”

*

Velhas atrozes, saídas
De tugúrios impossíveis,
Dispararam, raivoso, o dente
Contra tudo e toda a gente.

Velhinhas de gargantilha
Visitam o neto, a filha,
E levam bombons da crème
Ou palitos “de la reine”.

A ler p’lo sistema Braille
— Ó meus senhores escutai! —
Um velho tira dos dedos
Profecias e enredos.

Outros mijam, fazem esgares,
Têm “poses” e vagares
Bem merecidos. Nos jardins,
Descansam, depois, os rins.

Aqueloutros (os coitados!)
Imaginam-se poupados
Pelo tempo, e às escondidas
Partem p’ra novas surtidas…

Muito digno, o reformado
Perora, e é respeitado
Na leitaria: “A mulher
É em casa que se quer!”

Velhotes com mais olhinhos
Que tu, fazem recadinhos,
Pedem tabaco ao primeiro
E mostram pouco dinheiro…

E os que juntam capicuas
E fotos de mulheres nuas?
E os tontinhos, os gaiteiros,
Que usam cravo e põem cheiros?

(Velhos a arrastar a asa
Pago bem e vou a casa.)

E a velha que se desleixa
E morre sem uma queixa?
E os que armam aos pardais
Nessas hortas e quintais?

(Quem acerta co’os botões
Deste velho? Venha a cidade
Ajudá-lo a abotoar
Que não faz nada de mais!)

Velhos, ó meus queridos velhos,
Saltem-me para os joelhos:
Vamos brincar?

Alexandre O’Neill

Friday, July 23, 2004

[pág. 124]

Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros.

Álvaro de Campos, POESIAS


Porque um domingo é família
É bem-estar, é singeleza.

Mário de Sá-Carneiro, DISPERSÃO

Friday, July 09, 2004

[pág. 120]

Nos dedos do vento
O sonho dos amantes
Os cabelos voando
Nos dedos do vento
O carrocel levando
O riso dos feirantes
E a alegria do mundo
Em mealheiros de barro.

Orlando da Costa, FEIRA

Thursday, July 08, 2004

[pág. 116, POEMA INÉDITO]

CAPITAL
Casas, carros, casas, casos.
Capital
encarcerada.

Colos, calos, cuspo, caspa.
Cautos, castas. Calvos, cabras.
Casos, casos. Carros, casas...
Capital
acumulado.

E capuzes. E capotas.
E que pêsames! Que passos!
Em que pensas? Como passas?
Capitães. E capatazes.
E cartazes. Que patadas!
E que chaves! Cofres, caixas...
Capital
acautelado.

Cascos, coxas, queixos, cornos.
Os capazes. Os capados.
Corpos. Corvos. Copos, copos.
Capital, oh Capital,
Capital
decapitada!

David Mourão-Ferreira

Wednesday, July 07, 2004

[pág. 108]

Nesta árvore
onde até os pássaros se enforcam nos ninhos
há muito que mora
uma ninfa de carne incerta
fugida da borrasca
dos caminhos.

Bato-lhe de manso na casca...

Sou eu, ninfa. Abre! Estamos os dois sòzinhos
nesta rua deserta.

Sai cá para fora
e beija-me na boca.

Prova-me que a vida é louca.

José Gomes Ferreira



[pág. 95, POEMA INÉDITO]

Só nós e algum vadio te queremos,
meu rio Tejo antigo e sempre novo.
E, contudo, és as vértebras de um povo.

Armindo Rodrigues, DEZ ODES AO TEJO

Monday, July 05, 2004

[pág. 90]

E vós varinas que sabeis a sal
e que trazeis o Mar no vosso avental,
as Naus da Fenícia ainda não voltaram?!

Almada Negreiros, A CENA DO ÓDIO

[pág. 87, POEMA INÉDITO]

Alguém diz com lentidão:
"Lisboa, sabes..."
Eu sei. É uma rapariga
descalça e leve,
um vento súbito e claro
nos cabelos,
algumas rugas finas
a espreitar-lhe os olhos,
a solidão aberta
nos lábios e nos dedos,
descendo degraus
e degraus
e degraus até ao rio.

Eu sei. E tu, sabias?

Eugénio de Andrade



[pág. 80]

São muitos. A doca está cheia.
Os mastros esbeltos, velas enroladas,
— A graça, o encanto das proas em bico,
E o sol enxarcado de luz e de sonho
As águas paradas...
.............................
...E além, a meio do Tejo, um cruzador
Acendeu a caldeira... Irá partir?!...
Na distância uma espécie de neblina
— Assim como a cambraia da mais fina, —
Vai formando no azul uns flocos d'oiro,
Transparentes, finíssimos, ........
..........................................
E um bando de gaivotas a grasnar
Poisa nas água [sic], fica a baloiçar...

António Botto, BARCOS DE PESCA

Friday, July 02, 2004

[pág. 78]

Passou o Outono já, já torna o frio…
Outono do seu riso magoado.
Álgido Inverno! Oblíquo o sol, gelado…
— O Sol, e as águas límpidas do rio.

Camilo Pessanha, CLEPSIDRA


[pág. 74, POEMA INÉDITO]

Ceifadas breves por um sol rasante
que à mansa tarde encrespa em clamas ondas
de outono ribeirinho e retardado,
gaivotas grasnam, tombam ensombradas
no cintilar macio ante meus olhos.

Velozes barcos passam distância,
rasgando apenas em silêncio e espuma
as águas pálidas no estanho delas.

Ante meus olhos tudo. Não é muito
para que eu sinta uma existência pronta
a comover-se por saber que existe.

Nem mesmo é nada. Se por ser eu sinto,
se por sentir escrevo e porque o escrevo
outros convenço de que tudo está
unívoco, prefixo, necessário
no círculo real que isto contém,
apenas ao real roubei gaivotas
grasnando à beira-rio, neste outono
que torna mansa tarde o entardecer.

Jorge de Sena